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Neurociência e educação moral

Você pode educar crianças muito inteligentes. Crianças muito felizes. E com habilidades sociais bem desenvolvidas, elas poderão ter muito sucesso na vida adulta. Mas a verdade é que seu trabalho irá por água abaixo se elas não forem também bem comportadas.

“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”

Marcos 8,36

Nesta última publicação sobre o livro “A Ciência dos Bebês”, vamos falar de como você pode complementar a formação moral dos seus filhos com as últimas descobertas da neurociência. Como se dá o desenvolvimento moral nessa visão? Quais são as técnicas de punição mais eficientes? Quais os cuidados ao aplicá-las?

A moral humana é inata?

Assim como no post “Como ser feliz : Um guia para crianças”, na qual iniciamos com a definição dada no livro para o que seja felicidade, precisamos definir agora o conceito de moral. Para John Medina, autor do livro, moral é um conjunto de comportamentos carregados de valores, que é adotado por um grupo cultural, cuja principal função é a de orientar o comportamento social.

Muitos cientistas acreditam que nós já nascemos com uma consciência moral universal e que ela poderia ser vista como uma necessidade evolucionária para a cooperação social. As características da moral inata poderiam incluir a distinção do certo e do errado; e proscrições contra a violência social, como estupro e assassinato. Alternativamente, o psicólogo de Yale Paul Bloom lista o senso de justiça, as respostas emocionais à reflexão e ao altruísmo, e a vontade de julgar o comportamento alheio. Já o psicólogo Jon Haidt vê cinco categorias: dano, justiça, lealdade, respeito pela autoridade e algo intrigante chamado pureza espiritual.

Se a consciência moral é universal, podemos esperar que haja um acordo geral entre as culturas. Um teste organizado por pesquisadores de Harvard e realizado por milhares de pessoas de mais de 120 países parece confirmar, na compilação dos dados, a existência de um sentido moral universal (faça você também o Moral Sense Test).

Outro indício de que a consciência moral é inata tem a ver com o fato de que os danos a uma parte específica do cérebro podem afetar a capacidade de tomar decisões morais.

Então por que as crianças não são todas uns anjinhos?

A estrada entre o raciocínio moral e o comportamento moral é cheia de obstáculos. O piloto neste caminho tortuoso é a consciência. Sendo um conceito muito complexo, John Medina faz uma simplificação ao definir a consciência como: “algo que faz você se sentir bem quando você faz coisas boas e faz você se sentir mal quando você faz coisas más.” Contrariando os cientistas que consideram a consciência moral algo inato, há os que defendem que ela é uma construção social. Para estes, a internalização é a medida mais importante da consciência moral.

Uma criança que resiste à tentação de desafiar alguma norma, mesmo quando a possibilidade de ela ser flagrada e punida é zero, internalizou a regra. Ela não só sabe o que é certo, mas ela concorda com isso e tenta alinhar seu comportamento de acordo. Esse comportamento às vezes é chamado de controle inibitório, o que parece muito com funções executivas bem desenvolvidas.

Independentemente da consciência ser inata ou uma construção social, a vontade de fazer as escolhas certas e de evitar as erradas, mesmo na ausência de uma ameaça ou na presença de uma recompensa, é o objetivo do desenvolvimento moral. Sendo assim, é dever dos pais fazer os seus filhos alinharem-se com o seu senso interno do certo e do errado.

Mas isso leva tempo. Muito tempo…

Uma mentira a cada duas horas

Um indício de que esse processo leva alguns anos são as mentiras infantis. No começo, elas se baseiam na dificuldade que as crianças têm de diferenciar a realidade da fantasia, como se observa na sua ânsia de participar de jogos imaginativos. Elas também acreditam que seus pais são praticamente oniscientes, uma crença que demorará anos para se desmoronar. Mas aos 3 anos elas descobrem que os pais não podem (sempre) ler as suas mentes. E aí começam as “mentiras de verdade”.

Apesar de mentir imperfeitamente no começo, a habilidade se desenvolve de forma surpreendente. Aos 4 anos, a criança vai contar uma mentira a cada duas horas; aos 6, ela vai fazê-lo a cada 90 minutos. E à medida que seu vocabulário e sua experiência social aumentam, as mentiras se tornam mais sofisticadas, prevalentes, e difíceis de detectar.

Essa evolução sugeriu aos pesquisadores que certos tipos de raciocínio moral têm relação com a idade das crianças. Elas podem nascer com certos instintos morais, mas só a passagem dos anos irá moldá-los em uma forma madura.

Como o raciocínio moral se desenvolve

O psicólogo americano Lawrence Kohlberg, influenciado pelo trabalho sobre o desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget, desenvolveu uma teoria muito famosa para o desenvolvimento moral humano. De acordo com essa teoria, o processo se dá nos seguintes estágios:

  1. Evitar a punição: o raciocínio moral começa em um nível bastante primitivo, focado principalmente em evitar punições;
  2. Considerar as consequências: à medida que a mente da criança se desenvolve, ela começa a considerar as consequências sociais do seu comportamento, modificando-o de acordo;
  3. Agir por princípios: por fim, a criança começa a basear suas escolhas comportamentais em princípios morais objetivos, pensando não apenas em evitar punições ou em ser aceito pelo grupo. Podemos argumentar que o objetivo dos pais é chegar até aqui.

As crianças não chegam necessariamente a esta terceira fase por si mesmas. Junto com o tempo e a experiência, não podemos excluir a influência dos pais no desenvolvimento moral. Tanto para as boas ações quanto para as más. As crianças aprendem um mau comportamento só de vê-lo. Mesmo se for punido, ele continuará acessível na mente da criança.

Emoção vs. Razão

Alguns pesquisadores acreditam que temos dois conjuntos de circuitos de raciocínio moral e que as decisões (e conflitos) morais surgem porque os dois sistemas entram em “conflito” frequentemente. O primeiro sistema é responsável por fazer escolhas racionais. O segundo sistema é mais pessoal, emotivo. Como este último é capaz de balançar a sensibilidade humana, ele tende a dominar as decisões morais. Por exemplo: você mataria uma pessoa (inocente) para salvar outras cinco vidas em perigo? Ao imaginar-se realizando um ato tão chocante, a maioria das pessoas responde que não.

O mais interessante é que quando alguém perde a capacidade de sentir emoções, isto é, quando o córtex pré-frontal ventromedial do cérebro é danificado em um acidente, essa pessoa não passa a tomar decisões puramente racionais. Estranhamente, ela perde quase completamente a capacidade de tomar quaisquer decisões (conheça o trabalho do prof. Antônio Damasio).

John Medina conclui que se as decisões morais têm fortes raízes emocionais, elas provavelmente dependem também da maturidade emocional.

Regras e Disciplina

Passamos então a seguinte pergunta: se as crianças já nascem com alguma base moral (a famosa lei natural da religião), como podemos ajudar nossos filhos a construir um castelo moral sobre essa base? Como vamos levá-los ao desejado estágio de internalização moral?

As famílias que formam crianças bem educadas seguem padrões muito previsíveis quando se trata de regras e disciplina. Esses padrões não garantem que os seus filhos serão todos uns anjinhos, mas são as melhores ações que a ciência conseguiu estudar e comprovar.

O sistema disciplinar que funciona na maioria dos casos se sustenta em três colunas:

  1. Regras e recompensas claras e consistentes;
  2. Disciplina e punições;
  3. Explicação das regras.

1. Regras e recompensas claras e consistentes

Você pode não gostar do programa, mas a Supernanny tem o mérito de aplicar muitas técnicas tidas como bem sucedidas pelos artigos científicos. Por exemplo, ela:

  1. usa quadros que geram uma autoridade objetiva, ao postular regras realistas, claras e visíveis para todos;
  2. aplica as punições sem destruir a sensação de segurança das crianças;
  3. elogia as boas ações; e
  4. elogia também a ausência de más ações, que é tão importante quanto o item anterior.

Os pesquisadores mediram os efeitos dessas quatro estratégias parentais sobre o comportamento moral. Quando pais carinhosos e compreensivos definem normas claras e razoáveis ​​para os seus filhos, e então elogiam o seu bom comportamento, as crianças apresentam fortes evidências de uma construção moral internalizada, geralmente em torno dos 4 ou 5 anos. Esses são os comportamentos característicos do melhor estilo parental do estudo da Dra. Baumrind. Eles não são tudo o que você vai precisar na questão moral, mas do ponto de vista da estatística, você não vai conseguir criar um bom filho sem eles.

2. Disciplina e punições

Como nós corrigimos os comportamentos indesejados de nossos filhos? Como fazê-los internalizar as mudanças em vista? Com disciplina e punições. Sim, disciplina e punições.

As técnicas apresentadas no “A Ciência dos Bebês” provêm do behaviorismo, com a clássica divisão de punições e reforços.

Reforço de comportamento por subtração: reforço negativo

O reforço negativo é uma operação que aumenta a frequência de um comportamento desejado ao retirar um estímulo aversivo do ambiente. Um exemplo para a educação infantil: “Filha, você está dispensada de lavar a louça esta semana se ajudar seu irmão com o dever de casa”. Nesse caso, o comportamento a ser reforçado é ajudar o irmão e o estímulo aversivo retirado é lavar a louça.

Punição por aplicação (positiva) e por remoção (negativa)

A punição positiva pode ser entendida como o puxão de orelha após um mau comportamento, mas melhor ainda, como a consequência direta do erro da criança. Por exemplo, se você avisar seu filho que o leite está quente, mas mesmo assim ele decidir bebê-lo, a língua queimada é a melhor lição que ele poderá receber. Quando possível (com segurança), deixe seus filhos cometerem seus próprios erros. As pesquisas mostram que essa é a melhor forma de internalizar comportamentos.

A punição negativa é bem conhecida e muito utilizada por todos os pais. Exemplo: “bateu no seu irmão? Vai ficar sem jogar sem video game no final de semana.”

Ambos os tipos de punição, sob certas condições, podem produzir mudanças duradouras no comportamento infantil. Contudo, é preciso seguir um roteiro na aplicação das punições, pois elas têm uma série de limitações:

  • Elas suprimem o comportamento, mas não o conhecimento do ato errado;
  • Se elas não forem acompanhadas de um momento de aprendizado, as crianças nunca vão saber como agir corretamente;
  • Elas despertam sentimentos de medo e raiva, o que pode desviar o problema do mau comportamento para o relacionamento entre pais e filhos, se a punição não for adequada.

Por isso, é importante seguir o seguinte roteiro. As punições devem ser:

  • Punições de verdade: não devem ser uma surra, mas também não podem ser água com açúcar;
  • Consistentes: você deve aplicás-la todas as vezes que uma regra é quebrada. Todas as vezes, sem exceção. Você deve ser como um forno quente: encostou a mão, queimou. Sempre. Não dê chances à criança para quebrar regras, pois elas são mestras nisso.
  • Imediatas: quanto mais rápida a punição, mais rápido o aprendizado. A ciência confirma.
  • Emocionalmente seguras: quando a criança se sente segura, mesmo no momento chato da correção parental, a correção tem o seu efeito robustecido.

3. Explicando as regras

Uma só frase mágica que faz MUITA diferença na educação moral:

  • Sem explicação: “Não coloque a mão na boca do cachorro senão você vai ficar de castigo.”
  • Com explicação: “Não coloque a mão na boca do cachorro senão você vai ficar de castigo. Este cachorro é bravo e eu não quero que você leve uma mordida.

Sempre explique o porquê da regra e quais são as suas consequências. Mesmo que seja depois de aplicada a punição.

O nome científico dessa técnica é disciplina indutiva. Veja só o que acontece com o comportamento das crianças quanto ela é aplicada exaustivamente ao longo dos anos:

  1. Quando a criança pensar em repetir o ato errado no futuro, ela se lembrará da punição; e poderá sentir um estímulo fisiológico que gerará sentimentos desconfortáveis;
  2. Ela fará uma atribuição interna para esse mau-estar de acordo com a explicação que você deu anteriormente durante a punição: “Mamãe não quer que eu leve uma mordida” ou “não devo chegar perto de cachorros bravos”;
  3. Agora, sabendo por que ela está apreensiva — e desejando escapar do sentimento ruim — ela estará livre para generalizar a lição para outras situações: “melhor eu não cutucar o cachorro com essa vara”.

Crianças que são punidas sem explicações não chegam ao passo 2 ou 3. Elas estão sempre à procura de uma figura de autoridade, pois é a presença de uma ameaça externa que guia seu comportamento, não um compasso moral interno.

Concluindo: as técnicas não funcionam sempre e para todos

As técnicas apresentadas acima podem não surtir efeito sempre e nem para todas as crianças. Crianças com temperamento forte podem exigir um tratamento diferenciado, mais gentil e com ações mais diluídas.

Todas as crianças precisam de regras, mas cada cérebro se conecta de uma forma diferente. Sendo assim, os pais precisam conhecer muito bem o panorama emocional dos seus filhos — interno e externo — e adaptar as estratégias disciplinares de acordo.


E com isso terminamos a série de publicações sobre o “A Ciência dos Bebês”! Espero que todas as dicas apresentadas ao longo destas oito publicações lhe ajudem a educar crianças inteligentes, felizes e bem comportadas!

(crédito das imagens: Wikimedia e Flickr 1, 2)

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